sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Quadrinhos e literatura: ser ou não ser?



O que é literatura? Para o professor Vítor Manuel de Aguiar a literatura é uma “atividade artística que, sob multiformes modulações, tem exprimido e continua a exprimir, a alegria e a angústia, as certezas e os enigmas do homem. (...) E assim há de continuar as ser com os escritores de amanhã. Apenas variará o tempo e o modo.” (IN: LAJOLO 7-8).
Pensando nesse comentário é que propomos levantar, mais uma vez, o debate: quadrinhos são ou não literatura?
O sentido da palavra clássicos, segundo LAJOLO – 1985, está relacionado ao ensino de obras literárias nas classes escolares. Antigamente aprendia-se gramática, por exemplo, por meio de Os Lusíadas, Ilíada, Eneida etc, por isso clássicos, ou seja, da classe.
Hoje vivenciamos a era digital. Todos os textos que circulam na Internet estão rodeados, ancorados por inúmeras imagens que, na opinião do quadrinista Will Eisner, ajudam o cérebro na produção de sentido, uma vez que esse órgão compreende primeiro as imagens e as traduz em palavras. Os quadrinhos já faziam isso uma meia década antes do advento da rede.
Distribua, numa sala de aula, vários livros e entre eles alguns quadrinhos e observe qual chamará primeiro a atenção dos estudantes; parece óbvio. Mesmo que não leiam, os quadrinhos serão os primeiros a serem folheados.
Quem nunca se pegou saboreando as páginas da turma da Mônica, Pato Donald ou não sonhou escalar as paredes como o Homem-Aranha, ou voar de um mundo a outro em segundos como o Super-Homem? Muitos que leem este texto agora, de uma forma ou de outra, tiveram contato com os quadrinhos ou até mesmo tiveram suas primeiras experiências de alfabetização com eles, como foi o meu caso. Algum conservador de plantão diria: quadrinhos é coisa de criança! Pegaria seu jornal e riria com aquela charge que faz uma crítica ácida a algum fato político da semana e para relaxar, leria - escondidamente, é claro - as tirinhas que costumam ser publicadas no seu jornal diariamente. Tirinhas essas que acabam virando livros, como as de Fernando Gonsales e seu implacável Níquel Náusea, que está na área desde os anos 80. Essas mesmas tirinhas chegaram a importantes vestibulares como os da FUVEST, UNICAMP, UERJ etc.
Pergunta-se: por que então as histórias em quadrinhos não são, por muitos, consideradas uma forma de literatura? Ora, se os clássicos são aqueles que permeiam as classes, os quadrinhos já o são há bons anos, e, portanto, são literatura e das boas, porque até o cinema, a sétima arte, já adaptou várias dessas histórias para as telas, cujos recordes de bilheteria causam estardalhaço, veja Cavaleiro das Trevas, Homem–Aranha (I,II, e III) e mais recentemente Watchmen.
As Graphic Novels, ou romances gráficos são considerados os grandes responsáveis por dar um novo formato aos quadrinhos com seus temas adultos. Artistas como Will Eisner, Robert Crumb, Craig Thompson, Frank Miller, Art Spiegelman entre outros, publicaram histórias que ficaram conhecidas por todo o mundo. Aqui no Brasil, também, temos bons representantes dessa arte, nomes como o de Lourenço Mutarelli, Marcatti, Wander Antunes etc, fazem com que os quadrinhos de temas adultos ganhem contornos nacionais.
A cena brasileira ainda vive no underground, atingindo pequenos grupos, o que é, a meu ver, lamentável, uma vez que o grande público deve ter contato com todo tipo de arte. Acredito que essa inércia das graphic novels em nosso país deva-se a esse preconceito em relação a essas obras, contudo, grandes editoras como a Companhia das Letras, tem aberto suas portas para os quadrinhos, e isso é um saldo positivo.
Mas quando falamos em escola, é preciso haver o bom senso de que algumas dessas publicações não são adequadas a esse ambiente, porém, o acesso a elas deve ser permitido de alguma forma, porque falamos em arte.
Devemos repensar o ensino de literatura e os quadrinhos, para que possamos ser justos na hora de abordar questões como a que ora propomos neste espaço e não deixarmos passar despercebido um momento tão fecundo do despertar à leitura, independentemente do formato que ela venha apresentar. Sentem-se em suas poltronas, apertem os cintos, abram seus quadrinhos e preparem-se para viajarmos por mares nunca d’antes navegados!

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Poesia...

Depois de muito refletir com o assunto, parece-me que um historiador deve também e necessariamente ser poeta, pois somente os poetas podem entender essa arte que consiste em ligar os fatos com habilidade.
(Novalis)

O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso (pois, se a obra de Herodoto fora composta em verso, nem por isso deixaria de ser obra de história, figurando ou não o metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular.
(Aristóteles)

Prosa são palavras na melhor ordem possível; poesia são as melhores palavras possíveis na melhor ordem possível.
(Coleridge)


Contemplo como o igual dos próprios deuses
esse homem que sentado à tua frente
escuta assim de perto quando falas
com tal doçura,e ris cheia de graça.
Mal te vejo o coração se agita no meu peito,
do fundo da garganta já não saia minha voz,
a língua como que se parte,
corre um tênue fogo sob a minha pele,
os olhos deixam de enxergar,
os meus ouvidos zumbem,
e banho-me de suor,
e tremo toda,e logo fico verde
como as ervas, e pouco falta
para que eu não morra ou enlouqueça.

A grega Safo foi a primeira poetisa ocidental de grande expressão entre os homens. Ensinava a arte poética para as mulheres na ilha de Lesbos, já que havia uma grande repressão social em relação à mulher, originando o uso da palavra lésbica. Mesmo depois de séculos, na sociedade renascentista italiana, esse preconceito ainda permanecia, sob uma nova face: as mulheres solteiras que não eram reconhecidas por suas criações artísticas eram vistas como prostitutas. Assim, restavam apenas duas opções, casar-se ou pertencer ao mundo artístico. Não é de se espantar, já que, embora as recentes lutas feministas ocorridas há quatro décadas tenha modificado muito a condição social da mulher, ainda perduram vários preconceitos sociais, ainda que velados.

Bendito seja o dia, o mês, o ano (Benedetto sia 'l giorno, e 'l mese e l'anno)
A sazão, o lugar, a hora, o momento (a la stagione, e 'l tempo, e l'ora, e 'l punto)
E o país de meu doce encantamento (e 'l bel paese, e 'l loco ov'io fui giunto)
Aos seus olhos de lume soberano (da' duo begli occhi, che legato m'hanno)

E bendito o primeiro doce afano (e benedetto il primo dolce affano)
Que tive ao ter de amor conhecimento (ch'i' ebbi ad esser con Amor congiunto)
E o arco e a seta a que devo o ferimento (e l'arco, e le saette ond'i' fui punto)
Aberta a chaga em fraco peito humano (e le piaghe che 'n fin al cor mi vanno)

Bendito seja o mísero lamento (Benedette le voci tante ch'io)
Que pela terra em vão hei dispersado (chiamando il nome de mia donna ho sparte)
E o desejo e o suspiro e o sofrimento (e i sospiri, e le lagrime, e 'l desio)

Bendito seja o canto sublimado (e benedette sian tutte le carte)
Que a celebra e também meu pensamento (ov'io fama l'acquisto, e 'l pensier mio)
Que na terra não tem outro cuidado (ch'è sol dilei, si ch'altra non v'ha parte)

Petrarca: Poemas de Amor (tradução de Jamir Almansur Haddad)

* Francesco Petrarca constitui, ao lado de Dante e Boccaccio, a tríade da literatura ocidental moderna. Humanista, teve em Laura a inspiração (e expressão) de um amor real, muita mais que a Beatriz de Dante (embora real, idealizada no campo poético), aparecendo em sua expressão poética as consequências desse estado de alma. A triade italiana influenciou os artistas renascentistas e, a partir de então, toda a cultura ocidental.